No princípio era o Caos…

Para melhor orientação da leitura, sempre que quiser aprofundar-se em alguma palavra ou expressão, deus ou herói, visite o glossário, no menu do blog – veja em “categorias” – coluna à direita – e clique em glossário e comentários. Todos os termos constantes no glossário são sublinhados no decorrer dos textos do blog.

Para nossos estudos, é dispensável ter profundo conhecimento sobre o que descrevemos nesta postagem, no que se refere aos detalhes, nomes, sucessões. O importante é captar o sentido básico, a trama que traz à tona as origens da simbologia que aqui buscamos representar – o fio da meada, o início do novelo para os verdadeiros estudos que são objeto desse blog.

Com essas observações introdutórias, podemos nos entregar, enfim, ao início de nossa história. E começaremos por  entender como tudo começou, ou seja, pela visão mitológica da criação do universo. Desta origem, poderemos desenvolver um melhor conhecimento dos arquétipos e, enfim, de nossas própria histórias. Vamos a ela:

No princípio, era o Caos (Kháos). O abismo cego, escuro e ilimitado. A total ausência, um vazio primordial. Isto é instigador. O que pode surgir de um abismo cego, escuro, ilimitado?

Surge a Terra (Gaia) do seio do Caos. De alguma forma, Gaia representa um contrário de Caos, já que é presença. Uma presença distinta, uniforme, precisa. Nascida da ausência, do seio dessa ausência. Assim, à confusão, à ausência, ao vazio, opõe-se a presença nítida, firme e estabilizadora.

Jean-Pierre Vernant diz que Gaia é o “lugar onde os deuses, os homens e os bichos podem andar com segurança. Ela é o chão do mundo” (2000, 18).

As características de Gaia são a doçura, a submissão e a humildade. Acho interessante ressaltar que a palavra humildade vem de humus (= terra), de onde o homem (humus > homo) é modelado. Um bom motivo para reflexão… mas… vamos adiante…

De Caos surge também Eros (Éros – não o Eros do Olimpo, de Afrodite, que conheceremos mais tarde). Este Eros representa o “Amor Velho ou Amor Primordial” simbolizado nas imagens com cabelos muito brancos. Até então, não havia sexualidade. Esse Eros expressa o impulso primordial do universo.

Assim, nessa perspectiva, o Universo simbólico se inicia com esses três elementos básicos: Kháos, vazio primordial; Gaia, a presença firme, estabilizadora e Éros, o impulso primordial do universo.

Como deusa “cósmica” Gaia prescinde de sexualidade e gera sozinha Céu (Ouranós – Urano) e Pontos (água – todas as águas – ou, mais especificamente, a Onda do Mar, que permanece em suas entranhas e delimita suas formas), além de Montes (que lhe dá formas onduladas). Como deusa cósmica, reproduz o Céu (Urano) como espelho de si mesma, tornando-o o seu duplo contrário. É uma réplica tão perfeita, que Urano a cobre imediatamente, deitando-se sobre ela e não deixando entre os dois espaço algum, num casamento sagrado, o primeiro casamento cósmico, como dois planos perfeitamente superpostos do universo. Urano e Pontos são contrários a Gaia em sua expressão. Gaia tem formas definidas, firmes (bem como Montes). O Céu e a Água são fluidos e líquidos.

Segundo a Teogonia de Hesíodo, há a versão de que Tártaro surgiu também como um dos elementos primordiais, bem como Nix (noite). Nesta versão, Caos e Nix estão na origem do mundo. Nix põe um ovo, dando luz a Éros, e das metades da casca partida, nascem Gaia e Urano. Como em todo mito, há várias versões e possibilidades para explicar a origem do universo, mas todas terminam por consagrar o casamento de Gaia e Urano, como um senso comum. Vamos, assim, partir desse ponto, considerando como fundamental para nossos estudos, este primeiro casamento sagrado.

 Desse casal sagrado nasce uma numerosíssima descendência dividida em quatro grupos, completando 18 filhos: Titãs (seis), Titânidas (seis), Ciclopes (três) e Hekatonkhires (três).

Mas a união entre Urano e Gaia é cruel. Urano a cobre totalmente, ocupando todos os espaços de suas formas, não deixando entre eles espaço algum. Dessa forma, os filhos gerados não conseguem sequer sair do ventre da mãe, pois não há espaço entre o Céu e a Terra onde possam viver. Ao se deitar sobre Gaia, Urano tira qualquer possibilidade de “luz” (dar a luz!). Gaia se sente reprimida, inchada em seu ventre e totalmente sufocada por Urano. Mas não reage ou não se sente em condições de reagir.

Este elemento simbólico é de suma importância para nós, pois a contrasta com Réia, que conheceremos mais adiante. 

De qualquer modo, Gaia tem a doçura aliada à loquacidade e engenhosidade. É uma divindade ao mesmo tempo escura, por sua postura de submissão e humildade, e luminosa, por conter em seu ventre a luz (!). E conversa com seus filhos Titãs, especialmente o mais novo, Crono (Khrónos). Gaia fabrica dentro de si mesma uma espécie de foice (hárpe) e a oferece a Crono. Este espera que Urano ensaie uma nova cópula com Gaia e aproveitando-se da oportunidade, castra o pai. Dominado pela dor, Urano retira-se de Gaia e se afasta para o alto do mundo, de onde não mais voltará, criando assim, entre o Céu e a Terra um espaço para que todos possam vir à luz.

Nascem, assim, todos os filhos de Gaia. Crono lança por sobre seus ombros os órgãos do pai em direção ao mar. Do membro viril cortado, no entanto, caem gotas de sangue na terra, antes que este alcance o mar e dessas gotas nascem as Erínias, personagens simbolicamente vitais a nossos futuros estudos. As Erínias são, portanto, forças primordiais, ou advindas de forças primordiais cuja função será sempre a de se vingarem de uma afronta feita por um parente a outro, ou seja, crimes consanguíneos. “Representam o ódio, a recordação, a memória do erro e a exigência de que o crime seja castigado”. (in: Vernant, 2000, 25). Nascem também outros seres como Gigantes, que vão representar a força da guerra, e as Melíadas (ninfas), também guerreiras.

Assim, “do sangue da ferida de Urano nascem três tipos de personagens que encarnam a violência, o castigo, o combate, a guerra, o massacre” (op. cit). Isto será denominado, na descrição da mitologia grega como Éris, ou seja, conflitos, discórdias de todos os tipos (todas as contendas) e, mais especificamente, quando se tratar das Erínias propriamente ditas, discórdias provenientes de crimes em uma mesma família.

 Enquanto o movimento provocado por Gaia, Urano e seus filhos se desenrola, paralelamente, Caos, além de Gaia, produz por si só dois filhos: Érebo e Nix (noite). Érebro personifica a profundeza das trevas permanentes, enquanto Nix gera Éter e Dia (Hemera, em grego), ambas, portadoras da luz. Éter personificará a luz cósmica mais pura, mais próxima ao Céu, enquanto Dia e Nix passarão a formar um ciclo uniforme de noite e dia.

Assim se consagra a primeira geração divina e deixaremos para a outra postagem, o final da criação da chamada Teogonia (genealogia dos deuses), para que possamos, a partir de então, discorrer sobre alguns mitos, em particular.

Em resumo:

Caos gerou Gaia, Érebo, Nix e, também, Tártaro e Eros (o Amor Antigo);

Gaia gerou Urano e com ele gerou 18 filhos, sendo Crono o mais novo, o que castrou o pai, criando, assim, o espaço entre o Céu e a Terra e permitindo que esta fosse povoada pelas divindades então geradas.

Entre os vários pontos que poderão servir a nossos futuros estudos, gostaria de ressaltar especificamente do texto a fúria de Urano que tem, como consequencia, o nascimento das Erínias (Éris, em geral) inaugurando a noção de crime e castigo.

 Observação final: como fiz questão de ressaltar no início da postagem, os nomes dos deuses e deusas primordiais não precisam ser memorizados, bem como os detalhes de sua história. O intuito é que tenham apenas uma idéia do desenrolar da trama para que possam entender melhor alguns episódios e seus significados, futuramente. Para facilitar sempre a leitura, o glossário estará sendo atualizado constantemente, à medida que cada termo, expressão ou personagem vier a ser incluído em nossos textos. Te-lo à mão, facilitará qualquer necessidade de recorrer a significados não memorizados.

Referências bibliográficas:

Brandão, Junito de Sousa. Mitologia Grega, vols. 1, 2 e 3. Petrópolis, Vozes, 1986.

Grimal, Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. Paris, Presses Universitaires de France, 5 ed., 1976

Vernant, J-P. O universo: os deuses, os homens, S. Paulo, Companhia das Letras, 2000).

Sobre eulaliafernandes

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17 respostas para No princípio era o Caos…

  1. Gabriela da Silva disse:

    Muito bom. Gostei

  2. Gabriela da Silva disse:

    Entendi que, assim, nessa perspectiva, o universo simbólico se inicia com esses três elementos básicos: kháos, vazio primordial, gaia, a presença firme, estabilizadora e éros, o impulso primordial do universo.
    Como deusa”cosmico” gaia prescinde de sexualidade e gera sozinha céu(ouranós-urano) e pontos(água-todas as águas- ou mais especificamente, a onda do mar, que permanece em suas entranhas e delimita suas formas), além de montes(que lidar formas onduladas).

  3. Douglas, o agradecimento é meu por sua visita. Seja sempre bem-vindo!

  4. OI, Douglas, o agradecimento é meu, por sua visita. Seja sempre bem-vindo!

  5. DOUGLAS BARRAQUI disse:

    Perfeito. Obrigado por enriquecer nosso conhecimento.

  6. Oi, Marcos, tudo bem? Se você quer se aprofundar no assunto, sugiro a leitura de Mitologia Grega (3 volumes) de Junito de Souza Brandão. No que se refere especificamente ao texto que você cita, sempre que eu fizer uma citação de um autor, coloco, logo a seguir, a referência bibliográfica. As palavras usadas acima são minhas mesmo, por isso não cito, mas são tiradas do meu livro, Édipo, o herói do livre arbítrio, p. 29, parágrafo 2. O que me fez escrever dessa forma, com essas palavras? Meus estudos como professora de Cultura Clássica, e uma amante especial da Teogonia. Um capítulo inteiro do meu livro trata apenas disso e resolvi postá-lo aqui. Li muitos autores e todos se referem a este princípio de criação desta forma. Eu apenas resumi a ideia, criando o texto. Agradeço pela sua leitura. Estou sempre aberta a comentários. Seja sempre bem-vindo!

  7. Olá, Gostei Bastante do texto. Queria me aprofundar mais numa questão, pra isso tenho uma pergunta: Onde faz referencia sobre isso: “No princípio, era o Caos (Kháos). O abismo cego, escuro e ilimitado. A total ausência, um vazio primordial.”?

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  9. Eulalia Fernandes disse:

    Oi, Mario, Obrigada pela visita. Em breve, estarei publicando um livro sobre o assunto, por isso, parei as postagens por um tempo Mas elas voltarão.
    Seja sempre bem-vindo!

  10. Mario disse:

    Que texto maravilhoso!! Desde de criança sou fascinado pela mitologia grega e este texto é de certa forma o que eu estava procurando!!

  11. Eulalia disse:

    Oi, Jorge, obrigada por sua visita. Parei de postar, pois estou escrevendo um livro que conterá estas e outras informações. Mergulhei nesta nova empreitada desde o ano passado e pretendo publicá-lo em breve. Pretendo abordar raízes mitológicas e oferecer uma leitura sobre as questões que envolvem o autoconhecimento através do mito. Como muitas dessas questões serão abordadas no livro, por enquanto, deixo este blog de férias. Mas voltarei a ele, provavelmente, no próximo ano. Um abraço e obrigada pela leitura. Eulalia

  12. Jorge H. disse:

    Segue um comentário, como complemento ao belo texto:

    Kronos (Saturno), é uma personificação do tempo (daí, cronologia). E é dito aí no texto que a partir da ação de Kronos (tempo) e sua foice surgiu o ‘Espaço’: a dimensão Espaço.

    Então, a minha contribuição (que não é minha, mas de outras leituras) é sobre a relação tempo X espaço: todas as nossas referências de tempo estão intimamente ligadas com o espaço. Veja: um dia e ano são mensurações dos movimentos de rotação e translação da Terra em torno de si e do Sol. Assim, o tempo é uma medida também de distâncias.

  13. Jorge H. disse:

    Gostei do seu texto, parabéns pelo trabalho. O Seu blog já está nos meus favoritos, destrinchá-lo-ei! Rsrs

  14. Karina Abreu disse:

    Eu estava procurando sobre isso em todo lugar e ñ achava mais aqui eu achei Valeu!!!

  15. Sarita Bayer Pradez de Faria disse:

    Acho que “adorei” está ficando redundante. Mas Eulalia, tenho uma dúvida sobre outro aspecto do estudo de Mitologia que acho melhor enviar por e-mail. Não sei se o blog é o melhor caminho …beijinho, Sarita.

  16. Miriam disse:

    Imperdível! Muito bom poder estudar assim!
    Bjs. Miriam

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